Os contribuintes estão conseguindo reverter no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) a jurisprudência sobre a aplicação da multa de 150% em autuações fiscais por uso indevido de ágio. Em pelo menos três recentes decisões, a Câmara Superior, a última instância do órgão, afastou a penalidade.
Nesses casos, os conselheiros, por maioria de votos, entenderam que a alegada ausência de propósito negocial pela Receita Federal não pode ser caracterizada como simulação ou fraude – motivos para a aplicação da chamada multa qualificada. Com as decisões, duas delas publicadas ontem, a penalidade cai para 75% do valor devido pelos contribuintes.
Discussões sobre o uso de ágio têm origem em operações societárias. O investidor paga um valor pela rentabilidade futura da empresa que está adquirindo e, por lei, pode amortizar essa quantia, o ágio, num prazo de até cinco anos, reduzindo Imposto de Renda (IRPJ) e CSLL a pagar.
A Receita costuma autuar o contribuinte quando entende que a operação foi organizada apenas para reduzir carga tributária. E além de cobrar os tributos (IRPJ e CSLL) aplica a multa de 150% por considerar que houve simulação, fraude e sonegação.
Em um dos julgados mais recentes, o Carf manteve a autuação sobre amortização de ágio gerado com uso de empresa veículo em operação envolvendo a Tilibra. A Câmara Superior discutiu apenas a qualificação que elevou a multa de 75% para 150% (processo nº 16561.720192/2012-09).
Na decisão, o conselheiro Caio Cesar Nader Quintella, representante dos contribuintes e redator designado para o acórdão, afirma que, no caso, “nenhuma legítima hipótese legal de simulação ou fraude foi demonstrada e comprovada pela autoridade fiscal, sendo manifestamente improcedente tal justificativa para permitir o agravamento sancionatório da contribuinte”.
Quintella acrescenta que a ausência de razões negociais como motivação para desconsiderar negócios “plenamente lícitos”, caracterizados como simulados e fraudulentos, com a consequente exigência de tributos e aplicação da pena duplicada de 150%, não encontra respaldo na legislação nacional.
“A figura de origem estrangeira da ausência de propósito negocial, dentro da narrativa de que o contribuinte praticou determinado ato ou negócio jurídico visando exclusivamente obter vantagem tributária, não configura nenhuma das hipóteses legais de simulação e de fraude”, diz.
Para ele, não se pode atribuir ao caso as mesmas consequências da sonegação, fraude, conluio e simulação, que demandam comprovação por meio de elementos tangíveis, materiais e certos. “A lei tributária não pode obrigar e compelir os contribuintes e os gestores das entidades à ineficiência e à incompetência.”
O mesmo raciocínio foi aplicado em outro caso de ágio envolvendo empresa veículo (processo nº 10855.724094/2011-70). Na decisão, que envolve a fábrica de peças elétricas Delmar, Quintella diz que fundamentar as exigências e penas tributárias na afirmação de que o contribuinte poderia ter realizado a operação de outra forma é impor a via negocial com a maior onerosidade tributária, o que não pode ser acatado.
“Mesmo que se entenda que praticar um negócio ou ato sem propósito negocial seja, atualmente, um ilícito, tal manobra não evidencia a fraude ou seu intuito, carecendo nesse apontamento – pelo menos – dos elementos da má-fé e do artifício ardiloso, propositalmente enganoso”, afirma o conselheiro, também redator designado para o acórdão.
Em julgamento realizado em setembro de 2021, em cobrança de multa dirigida ao Grupo Holcim (processo nº 19515.721820/2013-90) o relator, conselheiro Fernando Brasil, representante da Fazenda, considerou que, para validar a multa, a fiscalização teria que comprovar que houve dolo por parte do contribuinte. No voto, diz que casos em que a autuação se baseia apenas em ausência de propósito negocial não caracterizam dolo.
Segundo a ex-conselheira Gisele Bossa, sócia do Demarest Advogados, os casos julgados agora se referem a autuações fiscais dos últimos anos, quando havia uma prática da fiscalização de vincular a suposta falta de propósito negocial a potencial ilícito fiscal. Não envolvia só casos de ágio, mas também incorporação de ações, exemplifica. “São temas em que a autoridade fiscal considera a operação abusiva, mas não temos o conceito de abuso”, diz.
O tema não implica só a multa de 150%, há ainda o risco de consequência penal. Com a manutenção da penalidade no processo administrativo, o procedimento é enviado ao Ministério Público para fins de apresentação de denúncia de crime.
As decisões são importantes, de acordo com a tributarista Thais Shingai, do Mannrich e Vasconcelos. “São decisões relevantes para casos de ágio, mas que extrapolam esse tema podendo atingir contribuintes que tenham sofrido a multa qualificada em outro contexto”, afirma.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) vai examinar os acórdãos para avaliar a necessidade de eventuais embargos de declaração. Em nota, diz que não houve uma modificação da jurisprudência do Carf propriamente dita, mas julgamentos com base nas características específicas dos lançamentos.
A PGFN afirma que o próprio voto vencedor dos acórdãos publicados ontem reconheceu que a avaliação do propósito negocial é uma “ferramenta útil e válida” para a investigação de ilícitos pela fiscalização. Ainda segundo a PGFN, não houve o afastamento do propósito negocial como instrumento para aferir a legitimidade das operações praticadas pelos contribuintes.
“Os acórdãos reconheceram, simplesmente, que não havia motivação suficiente para a qualificação da multa de ofício nos casos concretos”, diz a PGFN.
Fonte: Valor Econômico