O Superior Tribunal de Justiça (STJ) mudou o entendimento que liberava as empresas de apresentar certidão negativa de débitos fiscais (CND) para a homologação de plano de recuperação judicial. Por unanimidade, a 3ª Turma decidiu, de forma inédita, que, em caso de não comprovação da regularidade fiscal, o processo de reestruturação deve ficar suspenso até a apresentação do documento.
Na prática, podem ser retomadas todas as cobranças (execuções) contra a empresa em recuperação judicial. Também poderá ser pedida a falência da companhia. Apesar de a decisão não ter efeito repetitivo, é um precedente a ser seguido por juízes e desembargadores do país em casos parecidos.
A 3ª Turma analisou o recurso especial de um grupo de empresas do segmento de eventos digitais – todas em recuperação judicial (REsp 2.053.240). Elas contestam acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP).
No processo, as empresas alegam que não há fundamento jurídico que justifique a pena de extinção do processo por ausência das certidões fiscais, “sobretudo em atenção a todos os esforços despendidos para a manutenção e reestruturação ao longo do processo de recuperação judicial”.
Defendem também que as alterações promovidas pela Lei nº 14.112, de 2020, na Lei de Recuperação e Falência (nº 11.101, de 2005) não provocaram mudanças significativas na questão em discussão, tendo que ser mantida a posição “há muito tempo adotada na doutrina e na jurisprudência, de dispensa da apresentação de tais certidões”.
O artigo 57 da Lei de Recuperação Judicial e Falência determina que, após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores, “o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários”. Mas o artigo 47, da mesma lei, estabelece que a recuperação judicial deve promover “a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.
Por isso, há anos, a jurisprudência do STJ era em sentido contrário à exigência dessas certidões negativas. Em novembro, a mesma 3ª Turma livrou uma rede de móveis e eletrodomésticos da apresentação do documento (AgInt no Agravo em REsp 2074900).
Na decisão, o relator, ministro Moura Ribeiro, cita a prevalência do princípio da preservação da empresa e a jurisprudência da Corte ao votar favoravelmente à homologação do plano de recuperação judicial, mesmo sem as certidões.
Segundo o advogado especialista em recuperação judicial Guilherme Marcondes, por causa do posicionamento anterior do STJ, a restruturação das empresas por meio da recuperação judicial, frequentemente, deixava de tratar o passivo fiscal.
Agora, em voto proferido na terça-feira, o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, afirma que dispensar a apresentação de certidões negativas de débitos fiscais (ou de certidões positivas, com efeito de negativa), em razão da aplicação dos princípios da função social e da preservação da empresa, seria um pretexto, “sobretudo após a implementação, por lei especial [nº 14.112], de um programa legal de parcelamento factível, que se mostrou indispensável a sua efetividade”.
Em 2020, a Lei nº 14.112 instituiu a possibilidade de parcelamento e transação dos débitos do contribuinte em recuperação judicial, no prazo de dez anos. Na transação, o empresário e o Fisco sentam à mesa para negociar o pagamento da dívida. Antes da edição dessa lei, as empresas em crise diziam que não era possível exigir as certidões negativas, justamente porque não havia mecanismos que permitissem a quitação do que deviam.
O advogado Guilherme Marcondes, contudo, aponta que o parcelamento e a transação tributária da Lei nº 14.112 só se aplicam ao passivo fiscal federal. Os passivos fiscais estaduais e municipais ainda careceriam de tratamento específico que possibilite sua regularização.
Cabe recurso de embargos de declaração para esclarecer ambiguidades ou obscuridades, mas, se o novo posicionamento do STJ for mantido, diz Marcondes, poderá evitar que o empresário financie sua operação deixando de recolher os tributos devidos. “Por outro lado, essa decisão consolida o Fisco como um credor ultraprivilegiado, pois, apesar de não participar da recuperação judicial, a exigência da equalização do seu crédito pode inviabilizar o cumprimento do plano, em detrimento dos demais credores”, afirma.
Para a advogada Camila Crespi, especializada em restruturação empresarial do escritório Luchesi Advogados, a decisão da 3ª Turma coloca uma pá de cal no assunto. “Vários juízes entendiam que deixar de exigir a apresentação da CND servia como fôlego para a empresa poder se recompor e os débitos fiscais ficavam de lado”, diz. “Mas o artigo 57 da Lei de Recuperação e Falência é uma norma imperativa e sua aplicação é indispensável ao próprio êxito da recuperação judicial”, acrescenta.
Quem já teve o plano de recuperação judicial homologado não deve ser afetado pela mudança de jurisprudência no STJ, segundo Camila. “Mas para as empresas que ainda vão entrar em recuperação judicial e as que já estão nesse processo, mas aguardam a homologação do plano, deverá haver reflexos.”
Apesar da questão ainda estar pendente de pacificação – uma proposta de afetação como recurso repetitivo está sob análise da comissão gestora de precedente -, o procurador Leonardo Furtado, da Fazenda Nacional, entende que a decisão do STJ traz tranquilidade e um “certo alívio” por apresentar um novo horizonte jurisprudencial e materializar os esforços da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional na promoção da regularidade fiscal. “Para a Fazenda Nacional, a recuperação da empresa não se sustenta sem sua recuperação fiscal”, diz.
Fonte: Valor Econômico